Quadro de Edvard Munch, “Friedrich Nietzsche” (1906).

A crítica de Nietzsche à perspectiva historicista

No texto Segunda Consideração Intempestiva – Da utilidade e inconveniente da história para a vida (1873-74), Friedrich Nietzsche promove uma crítica à perspectiva histórica vigente em sua época. A historiografia com a qual o filósofo alemão se depara apresenta-se como uma imposição da ciência e da história sobre a vida.

Formado em filologia e considerado um divisor de águas da filosofia ocidental, Nietzsche assume uma atitude extemporânea diante do historicismo em voga e propõe o rompimento entre a filosofia e a história por considerar o excesso histórico um limitador da ação humana, uma doença da modernidade.

Contrapondo-se ao racionalismo moderno, o autor denuncia que os indivíduos, ao buscarem compreender racionalmente a realidade, acabariam por afastar-se dela, devido à hegemonia do historicismo que os guia para a negação do real e da vida.

“Enquanto a alma da historiografia residir nos grandes estímulos que um homem poderoso retira dela, enquanto o passado precisar ser descrito como digno de imitação, como imitável e como possível uma segunda vez, aquela alma estará em todo caso correndo o risco de se tornar algo distorcido.”

Na medida em que o homem transforma sua memória em um depósito de informações sobre acontecimentos passados, costumes, religiões, filosofias, artes e quaisquer outros conhecimentos, ele provoca sua própria degeneração.

Numa crítica aguda “em favor de um tempo que há de vir”, Nietzsche ataca a cultura histórica fomentada na objetividade da perspectiva científica baseada em conhecimento puro passado.

“Pois, em meio a um certo excesso de história, a vida desmorona e se degenera, e, por fim, através desta degeneração, o mesmo se repete com a própria história.”

Nos sentidos aceitáveis da história está o de colocá-la a serviço da vida. Nietzsche ressalta, entretanto, que um modelo de simples acumulação de informações passadas não se converte naturalmente em modelo de vivificação.

Ao questionar o valor da história, o autor sugere que ela seja pensada de forma a-histórica e supra-histórica, propondo, assim, um saudável esquecimento, uma certa condição não-histórica dos animais cuja motivação é viver a qualquer preço, condição que o homem tanto inveja porque é incapaz de aprender a esquecer atrelando-se sempre ao passado.

“Considera o rebanho que passa ao teu lado pastando: ele não sabe o que é ontem e o que é hoje; ele saltita de lá para cá, come, descansa, digere, saltita de novo; e assim de manhã até a noite, dia após dia; ligado de maneira fugaz com seu prazer e desprazer à própria estaca do instante, e, por isto, nem melancólico nem enfadado. Ver isto desgosta duramente o homem porque ele se vangloria de sua humanidade frente ao animal, embora olhe invejoso para a sua felicidade – pois o homem quer apenas isso, viver como o animal, sem melancolia, sem dor; e o quer entretanto em vão, porque não quer como o animal.”

Nesse aspecto, a criança também se torna alvo de aflição do homem, pois ela se sente a-historicamente, sem a necessidade de lembrar-se do passado, mesmo que tal vivência lhe seja tirada prematuramente até que o esquecimento desejado seja restituído apenas pela morte, que irá suprimir o presente e a existência de forma definitiva.

Assim sendo, o homem moderno mostra-se incompetente para criar uma verdadeira cultura com o conhecimento histórico que dispõe.

O sujeito da modernidade não ultrapassa seus limites porque a racionalização histórica o algema, tornando-o desconfiado de suas próprias ações, vacilante entre atender o instinto ou ao seu manual de informações passadas.

“Será que ainda são homens – perguntamo-nos então – ou talvez somente máquinas de pensar, de escrever e de falar?”

O fardo invisível e obscuro que carrega por ter a memória amplamente desenvolvida é o que levará tal sujeito ao enfraquecimento e a um iminente cansaço da própria vida por enxergar em sua existência uma imperfeição insolúvel.

Desse modo, o excesso de história pode produzir um homem passivo e retrospectivo, inerte, carente de originalidade e incompetente para vivificar o presente, inviabilizado de suas potencialidades criativas.

“Há um grau de insônia, de ruminação, de sentido histórico, no qual o vivente se degrada e por fim sucumbe, seja ele um homem, um povo ou uma cultura.”

A possibilidade de alcançar uma felicidade verdadeira e de fazer outras pessoas felizes, não em meio a ansiedades e privações, é possível sem a vivência das lembranças ao viver fora-da-história.

Para Nietzsche, em vez de cristalizar o indivíduo no tempo passado, o conhecimento histórico deve promover a vida em seu mais alto grau.

Para superar a miséria criativa da modernidade, é necessário saber exatamente quanto carrega de ‘força plástica’ o homem, o povo e a cultura. Ou seja, “quanto mais a natureza mais íntima de um homem tem raízes fortes”, de acordo com Nietzsche, “tanto mais ele estará em condições de dominar e de se apropriar também do passado”.

Tal força, que se refere a crescer por si mesmo, transforma e incorpora as ações do passado em ações justas no presente, como a do homem extemporâneo que evita a destruição da história pela própria história e não se limita a enxergar a felicidade apenas como algo sentado atrás da montanha para a qual deva dirigir-se.

O sentido da existência humana não se ilumina no decorrer de um processo que obriga aos homens olhar sempre para trás afim de guiar os passos vindouros. Dessa forma, a cultura histórica só é efetivamente saudável para o futuro em consequência de uma nova e poderosa corrente de vida, do vir a ser de uma nova cultura, logo, ela é capaz de servir à vida somente se é dominada e conduzida por uma força mais elevada agora e não quando ela mesma domina e conduz obliterando as pulsões vitais humanas.

 

Referência bibliográfica

NIETZSCHE, Friedrich. Segunda Consideração Intempestiva – Da utilidade e inconveniente da história para a vida. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003.

Imagem: Quadro de Edvard Munch, “Friedrich Nietzsche” (1906).