Teoria do Medalhão: Kant, Freud e Ingenieros na obra machadiana

No conto Teoria do Medalhão, Machado de Assis nos brinda, mais uma vez, com sua fina ironia ao referir-se ao comportamento de certas figuras da sociedade.

Por meio de um diálogo entre pai e filho, o autor expõe o caminho para tornar-se um homem medíocre ou, como ele prefere chamar sarcasticamente, um ‘medalhão’.

A crítica está inserida no contexto vivido pelo autor no século XIX. No entanto, um conto de Machado de Assis raramente está preso ao seu tempo. Tamanhas são a originalidade e a perspicácia que suas obras apresentam características atemporais.

Relacionar Machado a algum outro pensador da Filosofia beira um certo paradoxo, pois sua obra é rica em críticas e reflexões sobre os tipos humanos e a sociedade, demonstradas através dos espantos, das dúvidas e das contradições causadas pela ação das personagens que cria.

Entretanto, cabe ressaltar a constante lembrança que remete este conto às obras O Homem Medíocre, de José Ingenieros, um filósofo ítalo-argentino, Resposta à pergunta: Que é esclarecimento?, do filósofo alemão Immanuel Kant e O Mal-Estar na Civilização, do psicanalista Sigmund Freud. Passaremos a seguir ao conto e, posteriormente, à sua ligação com os filósofos citados.

A história machadiana acontece no final do jantar na noite em que o filho, Janjão, completa 21 anos. Preocupado com os caminhos que o jovem irá trilhar a partir desta tenra idade, o pai decide chamá-lo para uma conversa franca como a de dois amigos sérios.

O papo começa, despretensiosamente, a girar em torno da gama de profissões à disposição do rapaz. No entanto, revela-se a seguir a grande vontade do pai diante da entrada na maioridade do filho: quer vê-lo tornar-se, a exemplo do que, frustrado, não conseguiu ser, um medalhão.

Com o intuito de convencer Janjão a seguir o novo ofício, o pai salienta saber dos impulsos dos jovens, mas orienta o filho a moderá-los para estar pronto aos 45 anos, média de idade em que o ‘fenômeno’ medalhão manifesta-se na sociedade. Para atingir o feito, ele deverá ter muito cuidado com o cultivo das ideias para usos alheio e próprio, sendo bem melhor, não tê-las.

O garoto logo indaga ao pai se isso será possível, este que, prontamente, diz saber da espontaneidade com que as ideias podem surgir, no entanto, lhe aconselha algumas dicas para reduzir o intelecto, “por mais pródigo que seja, à sobriedade, à disciplina e ao equilíbrio comum”.

Assim, Janjão, afim de evitar o afloramento de ideias que possam surgir naturalmente com o decorrer da idade, deverá preveni-las desenvolvendo atividades como a sinuca, a leitura de compêndios de retórica, os passeios nas ruas, neste caso, sempre lembrando que deverá fazê-lo acompanhado, pois a solidão é um campo frutífero para ter as ideias que tanto deverá evitar.

Quando o jovem pergunta sobre o caso de não ter nenhum amigo para acompanhá-lo, o pai relativiza e continua o incentivando sob a alegação de que poderá ir a uma livraria, mesmo que seja para contar um boato, uma anedota ou falar amenidades, mas nunca para outro fim. Seguindo esses passos, em até dois anos terá reduzido o intelecto de modo relevante.

O filho fica perplexo por não poder adornar o próprio vocabulário, ao que o pai ameniza, dizendo que poderá, sim, empregar figuras expressivas, carregá-lo de sentenças latinas, citações, máximas e discursos prontos. Exemplificando, no caso do surgimento de uma lei equivocada, deverá dizer apenas “Antes das leis, reformemos os costumes!”, o que servirá para poupá-lo de futuros problemas e discussões.

Janjão indaga sobre a visível indisposição do pai com os processos modernos, este que responde não condenar a aplicação, mas louvar a denominação. Para o genitor, convém saber das descobertas e interesses científicos atuais, o que fará com que o filho adquira algum entendimento sobre significados e terminologias dessa área sem precisar recorrer ao tedioso trabalho de consultar os mestres através de suas obras, tarefa que considera perigosa a ponto de inocular alguma ideia nova durante a pesquisa.

O rapaz, diante da difícil tarefa que lhe é imposta, aprenderá, em seguida, sobre os benefícios da publicidade.

O pai, elucidando a dica, o alerta que, em vez de escrever um “Tratado Científico da Criação de Carneiros”, deverá comprar um carneiro e oferecê-lo, em jantar, aos amigos. Deverá realizar confraternizações com personalidades da imprensa para que os acontecimentos tornem-se de conhecimento público. Se ninguém da imprensa se habilitar ao préstimo, o próprio Janjão deverá fazê-lo, a fim de que a notícia se espalhe e ele se torne tão conhecido a ponto de tornar-se indispensável nas festas alheias.

O jovem poderá ainda, segundo os conselhos autoritários de seu frustrado pai, entrar na política, ligar-se a algum partido, contanto que não adote ideologias. Caso venha a tomar tal rumo, deverá aproveitar-se da tribuna para chamar a atenção pública, proferindo sobre assuntos polêmicos, que incitem debates e discussões, mas sem a necessidade de fazer nascer novas ideias, sendo salutar, portanto, evitar falar sobre a metafísica política, campo em que tudo já foi pensado, logo ideias novas poderiam germinar.

Para finalizar a orientação sobre como ser um medalhão, o filho, que fará o que puder para atender os anseios do pai, pergunta se não deverá ter nenhuma imaginação ou filosofia. Seu pai responde negativamente. No entanto, afirma que ele deverá saber falar sobre “Filosofia da História”, o que não significa que deverá saber do assunto, pois o tema fatalmente poderá levá-lo à reflexão, o que não é bom para o novo ofício.

Segundo o pai, ser medalhão não significa adotar uma postura melancólica. Pode-se ser alegre, brincalhão e usar a chalaça, jamais a ironia, pois esta está intimamente ligada às feições dos céticos e desabusados, tendo sido criada por algum grego da decadência.

Após uma hora de conversa, notando já ser meia-noite, o pai pede ao filho que recolha-se e pense bem no que foi falado, pois, guardadas as devidas proporções, segundo ele, a conversa da noite valeu o Príncipe de Maquiavel.

A profunda ironia de Machado de Assis reside, inicialmente, no fato de tratar-se de um diálogo entre pai e filho, em que o primeiro, ao invés de orientar, desorienta o filho sobre os caminhos da superficialidade.

A referência socrática, enquanto diálogos platônicos, está muito presente nesse sentido, principalmente quando, ao final, designa-se a criação da ironia como vindoura de algum grego decadente, em clara alusão ao método de criação de ideias socrático.

Posteriormente convém caracterizar que o conto vincula os “grandes homens” a “poucos feitos”, pois não criam, nem inovam, tampouco ousam arriscar-se. Embora sejam frutos da inércia social que cultiva a mediocridade, a efemeridade, acabam por realmente ter destaque em setores deslumbrados da sociedade, que não somente os admiram, mas almejam alcançar tal patamar.

Com reflexão semelhante e de época não tão longínqua – tendo em vista que o conto de Machado de Assis foi publicado em 1881 – Ingenieros descreve O Homem Medíocre e o publica em 1913. Ainda que a obra tenha mais de um século, também revela um caráter universal. É o “medalhão” de Assis, ou seja, os indivíduos domesticados, sem ideais próprios, alinhados às filas do convencionalismo social os quais o ítalo-argentino irá descrever em sua obra, conforme segue, ao designar tais seres como bazófias humanas, quando eles abstêm-se de seguir seus próprios caminhos:

Quando orientas a proa visionária em direção a uma estrela, e desdobras as asas para atingir tal excelsitude inacessível, ansioso de perfeição, rebelde à mediocridade, levas em ti o impulso misterioso de um Ideal. É áscua sagrada, capaz de te preparar para grandes ações. Cuida-a bem; se a deixares apagar, jamais ela se reacenderá. E se ela morrer em ti, ficarás inerte: bazófia humana. (INGENIEROS; 1953, p.11).

Em sua obra, O Mal-Estar na Civilização, Freud nos brinda com uma investigação antropológica e psicológica do homem em sua permanente busca pela felicidade, seja ela dada pela ausência de grandes sofrimentos e, por outro lado, pela vivência de fortes prazeres. O psicanalista destaca três fontes de sofrimento que ameaçam a espécie humana: a ameaça de deterioração e decadência que vem de nosso próprio corpo, o poder devastador e implacável das forças da natureza e o sofrimento proveniente das relações sociais. Nesse sentido, o aconselhamento a Janjão se mostra equivocado, pois o pai pretende moldá-lo aos ditames comportamentais da sociedade, no que ela tem de mais fútil, fazendo-o aniquilar sua subjetividade em prol de uma aparência condicionada à opinião pública.

No entendimento freudiano, os indivíduos, para viverem em sociedade, reprimem suas pulsões, o que resulta numa certa economia libidinal. Esse sofrimento nos apresenta como mais penoso que qualquer outro. Sob esse aspecto, não haveria uma regra de ouro comum no que se refere à busca da felicidade, cabendo a cada um de nós descobrir por si o modo mais peculiar de ser feliz. Certamente desvanecer-se interiormente, entregando-se às superficialidades externas, a mando de outrém, não levará Janjão ao caminho da felicidade, mas, muito provavelmente, ao da neurose.

Freud atesta que a frustração cultural na qual vivemos, devido à contradição entre sermos seres individuais e sociais ao mesmo tempo, pode ser sublimada através do deslocamento do prazer original para fontes de trabalho psíquico e intelectual, justamente aquelas que o pai de Janjão o quer afastá-lo, talvez porque não tenha encontrado seus próprios meios para livrar-se de sua frustração perante à sociedade e agora trata de introjetar a culpa sobre os ombros de Janjão, cerceando o maior bem cultural de seu filho, a liberdade individual.

O conselho ratificado a todo instante para que o filho fuja da criação de ideias, remete também imediatamente à noção kantiana de esclarecimento, que é a saída do homem de sua menoridade, do qual ele próprio é culpado. Segundo Kant, a menoridade é a incapacidade de fazer uso do seu próprio entendimento sem a direção de outro indivíduo. Para ele, os homens, por covardia ou inércia de servirem-se de si mesmos, são culpados por sua falta de esclarecimento.

Para Kant, ousar saber é ter coragem para construir a si próprio. Ao contrário de Janjão, que quando alcança a maioridade – no âmbito da lei – para, finalmente, tomar seu caminho para-si, acaba ludibriado pela preguiça ou covardia preferindo manter-se em sua acomodação, tornando-se menor ao seguir os conselhos grotescos do pai.

Nesse sentido, o conto machadiano revela a comodidade de manter-se na menoridade, pois traz um pai que faz as vezes do entendimento que o filho possa alcançar, livrando este último do esforço de pensar por si mesmo.

Ingenieros ratifica Kant ao descrever a antítese do homem medíocre, segundo ele, os idealistas:

Nem todos se extasiam, como tu, ante um crepúsculo, nem sonham ante uma aurora, nem vibram ante uma tempestade; nem todos gostam de passear com Dante, rir com Moliére, tremer com Shakespeare, crepitar com Wagner; nem todos emudecem diante do Davi, da Ceia ou do Partenão. É dada a poucos essa inquietude de perseguir avidamente alguma quimera, venerando filósofos, artistas e pensadores, que fundiram, em sínteses supremas, suas visões do ser e da eternidade, voando para além do real. (INGENIEROS; 1953, p.25).

Cabe ressaltar, no entanto, que o caminho de abster-se das próprias ideias não é tão raro, pois a imensa maioria da humanidade considera difícil a transição para a maioridade. As quedas podem acontecer no decorrer do percurso, mas não devem ser maximizadas a ponto de frear novas tentativas. Segundo Kant:

Depois de terem primeiramente embrutecido seu gado doméstico e preservado cuidadosamente estas tranquilas criaturas a fim de não ousarem dar um passo fora do carrinho para aprender a andar, no qual as encerraram, mostram-lhes, em seguida, o perigo que as ameaça se tentarem andar sozinhas. Ora, este perigo na verdade não é tão grande, pois aprenderiam muito bem a andar finalmente, depois de algumas quedas. Basta um exemplo deste tipo para tornar tímido o indivíduo e atemorizá-lo em geral para não fazer outras tentativas no futuro. (KANT; 1974, p.102).

Para Ingenieros, o homem medíocre evita “píncaros e abismos”. É um homem sem tranquilidade sob o sol e medroso durante a noite. Tal como o medalhão, procura um modelo ideal na penumbra. Teme ser original e quando, quiçá, resolve aventurar-se, tem “apetites urgentes: o êxito”. O êxito é seu triunfo efêmero, pois não suspeita de outra coisa que não o brilho do momento. Em oposição ao êxito, o ítalo-argentino relata a glória: “O êxito é triunfo efêmero, a gloria é definitiva, perene. O êxito se mendiga, a glória se conquista.”

Como também conhecedor de tais tipos, os medalhões, os homens medíocres, Ingenieros, em perfeita consonância com Machado, descreve o destino de Janjão. Segundo ele, a mediocridade é mais contagiosa do que o talento, pela simples razão que o talento incomoda. Ninguém gosta nem procura o desconforto.

O homem sem ideais e visões faz da sorte um ofício, da ciência um comércio, da filosofia um instrumento, da virtude uma empresa, da caridade uma festa, do prazer sensualismo. Conduz à ostentação, à avareza, à falsidade, à avidez, à simulação. O medíocre gosta das crises, pois só aí ele pode brilhar.

Machado, com requintes críticos, expõe ironicamente o quão errado pode ser o caminho indicado por um pai a um filho. Ao traçar o medalhão como uma figura que se faz presente e com as características cômicas, não fossem verdadeiramente trágicas para o desenvolvimento de uma sociedade nobilitante, ele sinaliza que seguir o ofício de medalhão é abster-se de alcançar o esclarecimento próprio.

Ser um “grande homem” de “grandes feitos” e receber os méritos desse processo é para aqueles que não cultivam a covardia tampouco a mediocridade e não aceitam ser tutelados por caminhos supostamente norteadores de sua conduta.

A liberdade do homem está em escolher seu próprio caminho e aqueles que não forem capazes de tal tarefa, preferindo atender às súplicas para que não raciocinem, estarão abrindo mão de serem livres.

Janjão, Sapere Aude!

Referências bibliográficas

ASSIS, M. Teoria do Medalhão. In: Obras Completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. (Volume II)

FREUD, S. O Mal-Estar na Civilização. São Paulo: Cia. das Letras, 2011.

INGENIEROS, J. O Homem Medíocre. Sorocaba: Paratodos, 1953.

KANT, I. Resposta à Pergunta: Que é Esclarecimento? In: Textos Seletos. Petrópolis: Vozes, 1974.