Contexto Histórico
Antes de falarmos sobre os principais pontos da defesa do grande sábio, descrita por seu principal discípulo, Platão, convém situarmos o contexto histórico em que se deram os acontecimentos.
Sócrates nasceu em 470 a.C. e foi condenado à morte no ano de 399 a.C., período de grandes transformações no mundo grego.
Atenas estava inserida em um aglomerado de cidades independentes que mantinham vínculos culturais e econômicos entre si. A união de todas essas cidades denominou-se Grécia.
O território de Atenas era ocupado pelos jônios, povos que, juntamente com os aqueus, dórios e eólios, estabeleceram-se ao sul da Europa por volta de 2000 a.C.
O espaço militarmente favorecido, localizado em uma colina, a acrópole, e no Porto de Pireu, propiciou a formação de excelentes marinheiros que dominaram o comércio no mar Mediterrâneo. Eles embarcavam com figos secos, lã, prata, mármore, armas etc. Quando retornavam traziam alimentos, tais como trigo, peixe seco e outros produtos manufaturados (telhas de Corinto, tecidos finos do Egito, perfumes da Arábia etc.).
Os cidadãos atenienses obtinham três direitos essenciais: liberdade individual, igualdade perante as leis e direito de falar na assembleia. Os deveres constavam em duas leis fundamentais que deveriam ser exercidas por todo cidadão: as leis divinas e as leis feitas pelo homem, a Bulé.
A idealização destas leis e as decisões político-econômicas da cidade se davam por meio da democracia direta. Esta era, contudo, uma preocupação do cidadão ateniense, maior de 21 anos, homem e não-estrangeiro. Assim sendo, crianças, mulheres, metécos (estrangeiros) e, obviamente, escravos não poderiam exercer cidadania. Só o cidadão ateniense, segundo a mentalidade da época, poderia discutir e decidir o destino da polis.
Segundo o historiador Moses Finley, a votação na assembleia era precedida por um período de intensas discussões nas lojas, nas tavernas, mesa de jantar etc., sendo, portanto, elemento de uma cultura comum. O conhecimento, as técnicas, as práticas mentais eram levadas a público, sujeitos ao delírio ou ao repúdio da multidão.
A palavra, nesse período democrático, deveria caminhar com a ordenação lógica, com a oratória. O bom orador deveria, portanto, estudar, falar, convencer e persuadir seus ouvintes.
Temendo as invasões persas, a comunidade grega, em 499 a.C., na Guerra Pérsica, estabelece uma solidariedade mútua, consolidando os aspectos culturais da polis. Entretanto, no final da guerra, com vitória grega (475 a.C.), os atenienses tornaram-se economicamente mais poderosos que os povos das outras cidades.
A ideia de dominação expandiu-se com a Liga de Delos. Os líderes atenienses, alegando proteção contra os “bárbaros”, criaram uma política de expansão militar sob a forma de arrecadação para o tesouro de Delos – que depois transformaria-se em impostos. As cidades independentes deveriam contribuir também com tropas e navios. O tesouro, a princípio, ficava na cidade de Delos e posteriormente foi transferido para Atenas, sendo, parte dele utilizado na reconstrução da capital grega, que transformou-se num império marítimo e comercial durante o governo de Péricles, o responsável pela construção do Partenon.
Com tais direcionamentos favoráveis à Atenas, Esparta organiza, com as cidades de Corinto, Mégara e Tebas, reivindicações sociais propagando descontentamento político suficiente para criar a Liga do Peloponeso, em 431 a.C. A guerra contra os atenienses ocorreu de modo descontínuo com intervalos de paz. Com o término do período conflitante que envolveu a Guerra do Peloponeso, em 404 a.C., o mundo grego encontrou-se debilitado. Os atenienses tentaram, sem sucesso, restabelecer o controle, mas os líderes espartanos expandiram cada vez mais seu poder e influência sobre a cidade grega.
A Apologia
O relato platônico traz Sócrates apresentando-se diante do povo grego. O sábio, ironicamente, inicia humildemente sua defesa, desculpando-se pela falta de traquejo para falar em tribunais. Apesar de ser um julgamento nitidamente de ‘cartas marcadas’, cabia a Sócrates rebater uma a uma as críticas que lhe foram impostas por seus acusadores: corromper a juventude, não crer nos deuses da cidade e criar novos deuses.
Para tanto, Sócrates compromete-se com a verdade desde o início, o que parece não ser a intenção de quem o acusa, e em rebater as mentiras atribuídas por seus inimigos – cada um deles representante de uma classe dentro da sociedade grega -, que abusavam do sofisma para persuadir os cidadãos em favor de seus interesses.
Sócrates relembra fatos em sua defesa que possam ajudar a comprovar sua inocência e influenciar positivamente os juízes a seu favor. Assim, insiste na ideia de que sua sabedoria ‘divina’ o levara a confrontar-se com aqueles que diziam-se sábios sem sê-lo, enquanto que ele mesmo reconhecia sua ignorância ao sempre enfatizar nada saber. Além disso, lembra que não fazia questão de cobrar por ensinamentos, ao contrário dos sofistas, que enriqueciam na ágora, enquanto Sócrates enfrentava situação de extrema pobreza por não dedicar-se a si, somente à missão de ajudar a polis.
Fica claro que o que torna Sócrates o mais sábio é o fato de que o conhecimento de ‘tudo’ cabe somente aos deuses, haja vista que a sabedoria humana é limitada e ele, tendo tal consciência, acabava sendo o mais sábio dos humanos, o que o fez ganhar mais inimigos.
O pensador supõe a possibilidade de ser inocentado, o que não o faria abandonar a filosofia, pois foi a ela que dedicou a toda sua vida e assim seria até o fim de seus dias. Sócrates salienta que sua morte não trará perdas a si, mas à cidade, pois Deus Apolo não enviará outro igual. Ele prossegue descrevendo a morte como um sono profundo ou um lugar que fará companhia aos deuses e amigos que já se foram, acalentando-se diante do júri.
Sócrates não pode ser julgado pela formação de caráter de ninguém, pois quando os jovens o acompanhavam em suas argumentações pela cidade, nunca o denunciaram. Jovens, no entanto, não eram mais, não podendo o filósofo ser acusado de corrompê-los tardiamente.
Ao ser condenado, sem estranhamento, ficam marcadas as palavras deixadas aos seus filhos em esperar que eles não cuidem tão ferrenhamente do corpo e das riquezas, mas do enriquecimento da alma.
O julgamento de Sócrates é enfático na injustiça, segundo ele mesmo, senão teriam lhe dado mais tempo para defesa, não apenas um dia. Poderiam tê-lo expulsado da cidade ou o alertado sobre seus atos subversivos, o que não ocorreu, demonstrando a má fé das acusações feitas por seus inimigos afetados cruelmente na vaidade.
“Mas já é hora de nos retirarmos, eu, para morrer, e vocês para viverem. Entre vocês e eu, quem está melhor? Isso é o que ninguém sabe, exceto Zeus”. Sócrates.
Acusação x Defesa
Na Apologia de Sócrates, Platão demonstra duas categorias de acusadores, as quais são: os acusadores antigos e os acusadores recentes.
Os acusadores mais antigos, usando de sua arte retórica, culparam Sócrates de estudar os fenômenos celestes – o que era visto na época como uma forma de ateísmo – e de ter uma razão mais fraca. Já os acusadores recentes, o incriminaram de acreditar em deuses estranhos à cidade (Deidade) e persuadir a juventude na mesma direção.
Meleto acusa Sócrates de “pesquisar, sem descrição, o que existe sob a terra e os céus, de fazer prevalecer a razão mais fraca e de ensinar aos outros este comportamento”.
Segundo Platão, Sócrates acredita que a visão de Meleto, que dava voz aos acusadores antigos, é fruto da má influência das comédias de Aristófanes, que, de forma caricatural, retratava o filósofo como um homem tolo e que não sabia o que dizia.
Sócrates alega não terem fundamento as acusações de cobrar pelas aulas que leciona, sobretudo por achar bonito ser capaz de ensinar outras pessoas e pelo fato de ser extremamente pobre e ter abdicado de uma vida confortável para ajudar a cidade a despertar dos seus maus caminhos.
O filósofo esclarece que a origem das acusações deve-se ao fato dele ter sido considerado pelo Deus de Delfos (Apolo) o homem mais sábio. A partir daí, Sócrates, a fim de comprovar se o Deus tinha razão, começou a procurar aqueles que diziam-se sábios, tais como políticos, poetas e artífices, com o intuito de inquiri-los sobre os temas que julgam dominar. Contudo logo descobriu que tais homens não eram sábios, mas apenas consideravam-se como tais. O pensador percebeu que eles diziam que sabiam o que, na verdade, não sabiam, enquanto ele, Sócrates, não dizia que sabia o que não sabia, além de considerar seu próprio conhecimento desprovido do mínimo valor. Entretanto tais homens, sobretudo aqueles de grande influência na cidade, começaram a odiá-lo por tamanha humilhação em terem sua autoridade e sua reputação questionadas diante da cidade.
Quanto à acusação de influenciar negativamente o comportamento dos jovens da cidade, Sócrates justifica que, em geral, são os jovens das famílias mais ricas que o seguem e imitam-no o hábito de fazer questionamentos àqueles que consideram-se sábios. E, tal como ele, estes jovens acabaram percebendo que os homens que diziam-se sábios não o eram. Ao suscitar a ira daqueles que não questionam a si próprios, eles exasperaram-se contra Sócrates na tentativa de evitar a vergonha de admitirem que nada sabiam.
De forma irônica, Sócrates, usando uma alegoria, questiona a Meleto se todos os que montam em um cavalo ou em qualquer outro animal são capazes de adestrá-lo ou se somente um é possuidor desta capacidade e verdadeiramente o faz a contento.
O sábio revela que, se corrompe alguém e ofende a cidade, é sem intenção, portanto, por tal ato praticado de forma involuntária, não deveria ser julgado, mas, antes, repreendido e ensinado a respeito da forma correta a agir.
Destarte fica claro que Meleto, na verdade, não preocupava-se com os propósitos da questão, sendo seu único desejo a condenação de Sócrates.
Em relação à acusação de considerar que o sol é pedra e a lua é terra, Sócrates explica que tais teorias não são suas, mas que poderiam ser encontradas com facilidade na orquestra da cidade nos livros de Anaxágoras de Clazômena e adquiridas por qualquer jovem por apenas três dracmas – moeda grega.
Meleto ainda acusa Sócrates de não crer nos deuses da cidade, mas em demônios. Sócrates rebate questionando a seu algoz se é possível que alguém creia nas coisas humanas sem crer nos homens ou que creia em cavalos sem crer em equitação. Logo, se verdadeira a acusação que Sócrates crê em demônios e, como os demônios também são considerados uma espécie de deuses ou filhos destes, então, seria impossível Sócrates crer em demônios sem crer em deuses. Dessa maneira, o filósofo demonstra que tal acusação é ridícula e falsa evidenciando o fato de estar sendo julgado não pelas suas crenças, pensamentos e atitudes, mas antes, pelo rancor e a vaidade nutridos contra ele por aqueles acusadores, que por diversas vezes tiveram seu domínio, sobre a cidade e seus cidadãos, questionado e ameaçado por Sócrates.
Apesar de tudo, Sócrates, de forma altruísta e corajosa, afirma que caso oferecessem a absolvição com a condição de cessar os questionamentos a seus concidadãos com as costumeiras perguntas sobre os valores da vida e da virtude, ele não aceitaria, pois a ordem e a obediência ao Deus eram maiores.
Sócrates ainda esclarece que, se for condenado, o maior prejudicado não será ele mesmo, mas a cidade, que perderá aquele que a alerta para não cuidar em demasia dos assuntos do corpo, como a vaidade e a fama, em detrimento dos assuntos da alma, como a virtude e a verdade.
O filósofo diz que, se corrompeu algum jovem, o fez quando este jovem era ainda moço em formação, entretanto, no momento deste julgamento, já passados muitos anos, estes jovens já seriam adultos, os quais, por si mesmos, poderiam tê-lo acusado de corrompê-los quando jovens, porém nenhum deles teve tal atitude. Na verdade, muitos destes jovens, já adultos, gostavam de conversar com Sócrates e de vê-lo examinar os que julgavam-se sábios e os que o eram de fato.
A Missão e o Legado de Sócrates
Primeiramente, Sócrates se via incumbido de uma missão muito difícil, que era a de interrogar as pessoas sobre a vida que levavam e sobre as verdades que defendiam como absolutas. Esta missão foi dada a partir do dia em que seu amigo Querefonte consultou o oráculo de Apolo e este revelou que Sócrates era o homem mais sábio dentre todos os homens.
Depois da notícia, Sócrates ia às ruas e dialogava com diversas pessoas na ágora. Ciente de nada saber, procurava nas pessoas que se diziam sábias o motivo para ser mais sábio do que elas, já que pareciam tudo saber.
Tal missão fez com que Sócrates levasse as pessoas ditas sábias a um beco cognitivo sem saída. Quando Sócrates lhes fazia perguntas – da área de conhecimento delas mesmas – e elas respondiam, ele aprofundava os questionamentos. De certa forma, chegava ao ponto em que o interlocutor não dispunha de respostas racionais para as perguntas de Sócrates. As pessoas ditas sábias eram colocadas como meros seres que, na verdade, nada sabiam. Esse foi claramente um dos motivos para que Sócrates tenha formado grande número de inimigos e muitos discípulos ao seu redor.
Sócrates torna-se um marco fundamental na Filosofia, pois a sua grande dádiva era a de perguntar. Ele interrogava as pessoas fazendo-as pensar no que faziam na vida e porquê faziam, abrindo margens para a busca da verdade.
As pessoas não mais poderiam afirmar deter todo o saber, já que passavam a ser responsáveis pela reflexão sobre suas condutas e seus pensamentos pré-concebidos em relação ao mundo. Esta era a característica marcante na missão de Sócrates e que o levou à morte. As autoridades intelectuais da época viam no pensador um risco para com a ‘inteligência absoluta’ por elas defendida. Os principais acusadores foram Ânito, um líder democrático, Meleto, um poeta desconhecido, e Lícon, certamente um retórico.
A importância de Sócrates é muito grande até os dias de hoje. Ele deu um exemplo ético ao recusar a oportunidade de fuga dada pelos amigos diante da injusta sentença de morte. Justificou que seria contra seus ensinamentos e princípios ignorar as leis da polis que ele tanto defendia, por isso resignava-se à condenação de beber cicuta.
Sócrates deixou marcas de sabedoria e virtude na história. Tornou-se figura-chave da Filosofia ao questionar a vivência do homem no mundo, propor soluções lógicas de pensamento e defender a verdade como princípio fundamental da vida entre os homens.
Sócrates, pedimos desculpas pela cicuta!
Referências bibliográficas
FINLEY, M.I. Economia e Sociedade na Grécia Antiga. São Paulo: WMF Martins Fontes, 1989.
FUNARI, P.P. Grécia e Roma: Coleção Repensando a História. São Paulo: Contexto, 2002.
PLATÃO. Apologia de Sócrates. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011.
Imagem: Quadro de Jacques-Louis David, “A Morte de Sócrates” (1787).