Ao procurarmos o sentido etimológico da palavra “antropófago”, constatamos que ela vem do grego “anthropos” + “phagein”, que significam, respectivamente, homem e comer. No senso comum, denota comer uma ou várias partes de um ser humano. No entanto, ao aprofundar-se no conceito, comumente chamado de canibalismo, merece relevante destaque o fato de tratar-se de um ritual, não estando resignado à mero hábito alimentar.[1] O contexto mágico cerimonial desta prática se caracteriza em adquirir as habilidades e forças dos que são deglutidos e, assim definirá Montaigne em seus Ensaios, cujo capítulo é intitulado “Dos Canibais”, e que irá, decisivamente, influenciar o “Manifesto Antropófago”, de Oswald de Andrade, marcando o movimento artístico-literário brasileiro conhecido como Modernismo.
A Semana de Arte Moderna, ocorrida em 1922, é considerada o marco inicial do modernismo brasileiro. Com a participação de artistas de São Paulo e Rio de Janeiro, o evento, liderado pelo Grupo dos Cinco, integrado pelos escritores Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Menotti Del Picchia e pelas pintoras Tarsila do Amaral e Anita Malfatti, contou com a apresentação de quadros, conferências, obras literárias, danças e recitais, inspirados no vanguardismo europeu expresso por movimentos como o cubismo, futurismo, dadaísmo, expressionismo e surrealismo, misturados a temas brasileiros.
Marcado inicialmente por possuir um caráter anárquico, o modernismo visava romper com as estruturas do passado, na tentativa de definir novas posições para a arte e a cultura brasileiras. O estilo foi determinado pela liberdade criativa e pela renovação radical da linguagem e dos formatos. Nesse sentido, houve uma quebra com os formalismos culturais eruditos até então vigentes na arte tradicional. Para tanto, havia uma busca incessante pelo moderno, original e polêmico, cenário em que o nacionalismo via-se representado em suas múltiplas facetas.
Dessa forma, o modernismo acontecia ao mesmo tempo em que a modernização caminhava no Brasil na década de 1920, dando os primeiros sinais de mudanças na vida política, econômica e social, através de um contexto histórico nacional sinalizado por revoltas militares; greves de trabalhadores, aviltados pelas agruras que o capitalismo impunha no novo sistema desenvolvimentista industrial recém implementado em detrimento do modelo agroexportador café-com-leite; pelo avanço do progresso científico entre outros.
Nesse contexto, a antropofagia é trazida pelas mãos de Oswald de Andrade, a exemplo dos rituais indígenas antropofágicos brasileiros, por meio do “Manifesto Antropofágico”, de 1928. A inusitada e polêmica manifestação literária propunha a devoração simbólica da cultura do colonizador europeu, no entanto, sem abrir mão de nossa identidade cultural. Desde então, muita coisa mudou no Brasil, tanto no aspecto cultural, como social, político e econômico.
As “mãos que alimentam” de Oswald de Andrade, segundo Jeffrey Schnapp, iniciaram a interação árdua com o público, pregando, ensinando, formulando leis ou só fazendo bobagens – em referência ao polemismo oswaldiano – , num contexto imediatamente festivo e solene, em que coisas ocultas tornam-se expostas, “coisas que vão do óbvio ao escandaloso, do heroico ao estúpido, do privado ao público”.
O manifesto foi escrito numa linguagem elíptica, repleto de duplicidade de sentidos, com frases aparentemente desconexas umas das outras, representando uma retratação do caráter assimétrico da cultura brasileira. As formulações que dele podemos extrair trazem muitas influências. Dentre elas, a do filósofo francês Michel de Montaigne, em citação exposta à filiação “Oú Villegaignon print terre”, referência presente no início do ensaio “Dos Canibais” que remete à “França Antártica”. Segundo Montaigne, um Novo Mundo é descoberto naquele século, comentando a efêmera colonização francesa na Baía de Guanabara (RJ) por volta de 1550:
Essa descoberta de um imenso país parece de grande alcance e presta-se a sérias reflexões. Tantos personagens eminentes se enganaram acerca desse descobrimento que não saberei dizer se o futuro nos reserva outros de igual importância. Seja como for, receio que tenhamos os olhos maiores que a barriga, mais curiosidade do que meios de ação. Tudo abraçamos mas não apertamos senão vento.
Se o nacionalismo tem marca preponderante no movimento modernista através da ruptura com o academicismo, tão identificado com o estrangeirismo, é paradoxal a importação de influências para a antropofagia oswaldiana aliada ao símbolo nacional canibalista indígena. Mas Oswald clama por comida: “pão dos anjos, um banquete filosófico, somente simples pão velho”, de acordo com Jeffrey Schnapp, que ainda completa: “como não há certeza de que será servida, alimenta-se de fragmentos de textos anteriores”. Eis a deglutição do estrangeiro, na qual conta estabelecer um limite entre “Tupy or not Tupy”, entre pecadores e santos, capitalistas e comunistas, saudosistas e futuristas. Para Schnapp:
A refeição é satírica, feita de uma miscelânea de pratos heterogêneos. Uma pitada de sal aqui, um pouco de insinuação lá; uns poucos trocadilhos aqui, algumas hipérboles lá; por todas as partes, há as armadilhas da didática (listas enumeradas, equações e aforismos) e pedidos de ação e reação. Muitas vezes, o cozinheiro está de péssimo humor. Ele agita o seu punho, entre socos e tapas. É um palhaço, porém os seus objetivos são sérios. Mexendo a panela, ele dita novas leis.
Nesse sentido, Schnapp nos caracteriza como amantes carnais e comedores de carne renegando a “eles”, os não tupis vestidos, armados com sua cultura patriarcal, catecismos, regras e tabus, referindo-se às elites vegetais colonizadoras do Brasil, adoradoras de Jesus de Belém, catequizadas por missionários especialistas em lógica e especuladores representados pelo Padre Vieira e a corte de Dom João VI.
A Antropofagia é um primitivismo, tão característico das vanguardas europeias influenciadas por Paul Cézanne e seu apreço pelas máscaras africanas que acabou por transferi-las para suas telas, autorizando o cubismo de Picasso, Portinari, Tarsila entre outros. É o “primitivo moderno”. É a aceitação de nossa própria mistura ao que gostaríamos de ser – ou o que gostariam que fôssemos. É o deglutir de nossa realidade, com pitadas das outras. É a volta às raízes para construir um futuro que não se nega ao progresso. E não se negou!
“Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Philosophicamente.”
Oswald de Andrade
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[1] É claro que há casos em que a patologia se faz presente no canibalismo, ou mesmo nos atos predatórios de dominação, mas não são esses que nos interessam aqui tratar.
Referências bibliográficas
MONTAIGNE, M. Ensaios. (Vol. I) São Paulo: Abril Cultural, 1996. p. 192-203. (Coleção Os Pensadores)
SCHNAPP, J.T. Morder a mão que alimenta. In: ROCHA, J.C.C.; RUFFINELLI, J.(org.) Antropofagia hoje? Oswald de Andrade em Cena. São Paulo: É Realizações, 2011. p. 399-404.
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