Conhecida por livros que revelam o comportamento sexual na sociedade brasileira, assim como os percalços afetivos de personagens como Dom Pedro I e Princesa Isabel, a historiadora Mary del Priore se aventura pela primeira vez num romance histórico adulto. “Beije-me onde o Sol não Alcança” trata do triângulo amoroso envolvendo um conde russo, uma jovem herdeira de terras e uma fascinante ex-escrava, figuras reais do Brasil no século 19.
Por Daniel Benevides
Entusiasmo. Essa é a primeira palavra que vem à cabeça quando se conhece Mary Del Priore. Defensora da popularização da história, a qual considera muito presa ao linguajar pesado da academia, foi professora doutora na USP por 11 anos e fez pós-doutorado na francesa École des Hautes Études en Sciences Sociales. Dona de uma energia invejável, escreve e pesquisa todos os dias em sua casa na zona rural de Teresópolis, no Rio de Janeiro, “onde eu tenho sossego suficiente e isolamento necessário”. Tamanha disciplina gerou 45 livros em cerca de 30 anos, no papel de autora, coautora ou organizadora. Alguns foram sucesso de vendas, como O Príncipe Maldito, A Condessa de Barral e Histórias Íntimas. Ela também recebeu inúmeros prêmios, dentre eles Jabuti, APCA e Casa Grande e Senzala.
Acostumada a falar para alunos e plateias em seminários e festivais literários, além de programas de TV, tem um discurso atraente, cheio de curiosidades saborosas e argumentações convincentes. Quando fala de Beije-me onde o Sol não Alcança, seu primeiro romance histórico adulto, não é diferente: simpática, discorre sobre as diferenças entre ficção e realidade com a mesma desenvoltura com que denuncia as hipocrisias e o racismo da sociedade brasileira, temas presentes na história envolvendo o Conde Haritoff, sua mulher, Nicota Breves, e sua amante, a ex-escrava Regina Angelorum, protagonistas do romance.
Conta que a documentação que deu estrutura ao livro, “curiosamente pertence a uma grande colecionadora de antiguidades, a dona Ieda Borges, que jogava baralho com a minha mãe.” Essa documentação havia sido passada para Afonso Romano de Sant’Anna, que “queria fazer uma minissérie para a Globo e não conseguiu. Ele me ofereceu, eu pedi licença para a Ieda, reabri o baú de cartas e escrevi o romance.”
Brasileiros – Como foi essa passagem de historiadora para romancista?
Mary Del Priore – Primeiro eu redescobri um fato velhíssimo, a história e a literatura já andaram de mãos dadas há muito tempo. Se você pegar as academias dos séculos 17, 18, um historiador pode ser um poeta, pode ser um ficcionista, um teólogo…. não havia essa separação que vai ser criada com a institucionalização da carreira de historiador. Por outro lado, você não pode entender a revolução industrial inglesa sem ler Dickens. Você não consegue entender o que foi a vida do minerador francês sem ler Germinal, do Émile Zola. E, se você quer saber tudo sobre a belle époque francesa, leia Proust. Quer conhecer o que foi o sul dos EUA? Leia Faulkner. Literatura e história sempre estiveram muito juntas. Muito por conta da camisa de força das universidades, da teoria esmagadora, do marxismo, isso tudo começou a se divorciar, a linguagem começou a ficar cada vez menos bonita, com narrativas cada vez mais secas, muito em cima de gráficos, de tentativas de provar a verdade, como se a gente pudesse exibir uma fotografia 3×4 e dizer: é assim. A verdade é construída pelo olhar de cada históriador. Eu me lembro sempre daquela definição dos irmãos Goncourt de que a história é o romance que poderia ter acontecido e o romance é a história que aconteceu. Ou seja, o romance tem um fecho, a gente sabe exatamente o que aconteceu, e a história está em aberto, porque ela admite várias interpretações.
Mas como você chegou, afinal, ao Beije-me onde o Sol não Alcança?
Comecei com romances juvenis e tive um convite da Planeta, que foi um desafio do editor José Maria Calvin de fazer um romance histórico. Sempre pensei nisso. Acho que o Brasil teve grandes romancistas históricos; o maior deles, de longe, foi Cornélio Penna, autor de A menina morta, um romance sobre o final da abolição que é sensacional. Tem o João Silvério Trevisan, com Ana em Veneza, uma obra fenomenal, espetaculosa, e outros autores, como o maravilhoso Agripa Vasconcelos e o Paulo Setúbal, no inicio do século 20. Hoje, entre os saxônicos, há inclusive romances históricos policiais; os caras já estão dividindo por gênero!
É curioso que o seu livro é um romance histórico… com notas de rodapé!
O Jacques Fux, um grande autor mineiro, meu amigo, me escreveu dizendo: Puxa, o Borges diz que é para a gente fazer justamente o contrário! E eu respondi: eu não sou o Borges. Achei bacana poder fazer notas, publicar a bibliografia de todos os jornais franceses que eu pesquisei, os jornais aqui no Vale do Paraíba e poder falar do meu trabalho de historiadora por trás da ficcionista.
Quanto você diria que tem de ficção e de história no livro?
50% de cada.
E o que a ficção diz no livro que a história não diz?
Ela dá voz, ela cria, ela permite ao historiador humanizar os personagens. Por exemplo, no caso do conde russo, eu li todos os viajantes franceses, porque ele vem para o Brasil com esse olhar, vem para achar tudo sujo, mal cheiroso, caipira, ele tem esse olhar preconceituoso. Ele fala: “A nobreza brasileira é de meia tigela”, “não sabem comer à mesa, não sabem falar línguas, têm pouca leitura”, mas tudo isso é verdade. Para fazer a voz da sinhazinha, da Iaiá, obviamente fui ao Machado de Assis e José de Alencar, porque ela é a heroína romântica, aquela menina que não sabe nada sobre sexo, sonha em se casar com o príncipe encantado. E para a voz da escrava, obviamente a documentação sobre a escravidão me ajudou demais. Mas o melhor personagem para mim é inventado, que é o Mulato. Volto a dizer, o século 19 é o século do mulatismo, da ascensão do mulato, e esse mulato vai personificar a dicotomia da sociedade brasileira que corre atrás de tudo o que é moderno, mas que, no fundo, é extremamente reacionária e retrógrada, como somos todos nós ainda hoje. Se o brasileiro se olha no espelho ele vê duas caras, as duas caras da sociedade brasileira.
Lembro que a Marguerite Yourcenar, referência no campo do romance histórico, fazia bastante pesquisa. Imagino que você também.
Ah, ela é maravilhosa! Para escrever o grande Memórias de Adriano, visitou o Egito, a Grécia, fez arqueologia, foi às fontes com disposição de historiadora. Em Beije-me onde o Sol não Alcança, um titulo um pouco pornô soft, extraído de uma poesia do Quevedo, apresento uma documentação que é absolutamente inédita e digo alguma coisa nova. Tanta gente escreve sobre escravidão, mas nunca achei um documento de um branco explicando por que vai casar com uma negra e a argumentação que ele (Conde Haritoff) usa é maravilhosa, a cara do Brasil. Ele diz para o amigo, a quem escreve: “Tudo bem, você está me cobrando porque vou me casar com uma negra, mas eu te pergunto: e se ela fosse rica, ela não seria branca e eu não seria um negro pobre?” Porque nesse momento ele está empobrecido. Isso desmascara essa hipocrisia do Brasil onde tudo passa pela grana. Acho legal quando você consegue levar a obra um pouco adiante de ser uma narrativa ficcional bacana, e mostrar o historiador que está por trás do escritor. Você estará lendo em primeira mão, terá uma informação nova ali.
Você tem uma equipe?
Não, apenas um pesquisador que me acompanha desde O Príncipe Maldito que é o meu querido Carlos Mihono, mas eu tenho prazer em fazer pesquisa, é a cereja do meu bolo. Eu é que vou atrás dos documentos, dos arquivos, vou ver as imagens. Eu gosto, esse é o meu trabalho. Sou historiadora, não por paixão, mas por danação (risos). Nós temos no Brasil uma coisa absolutamente preciosa que são os arquivos privados, milhares de famílias de grandes aristocratas do passado que têm ainda velhos documentos em baús e eu venho contando com a colaboração dessa gente. Quando escrevi o Príncipe Maldito, sobre o neto do imperador Dom Pedro II, recebi muita colaboração de monarquistas do Brasil inteiro mandando cartas e informações que a gente raramente encontra nas bibliotecas.
Como você criou essa rede de colaboradores?
É fantástico o papel da internet nisso tudo. Tenho um blog extremamente ativo que é o História Hoje, em que nós abrimos um canal de comunicação com os professores de História que estão na rede pública e na rede privada. E ser professor de história hoje é ser um profissional do entusiasmo. É tão difícil, o professor é mal remunerado, sobretudo nas escolas públicas, e os índices de violência contra professores é gritante. O blog acabou se tornando uma espécie de espaço onde as pessoas contam as dificuldades que têm para trabalhar e da sua paixão por história. Em vários livros que escrevi procuro discutir um pouco esse Brasil extremamente machista, homofóbico e racista. A história poderia ser o fórum onde essas questões estivessem sendo discutidas, mas a sociedade no fundo dá tão pouca importância à possibilidade de debater, discutir, pensar, que a história acabou sendo uma disciplina ligada à geografia, muitas vezes dada por professores que não têm tanto entusiasmo e isso acaba impactando o aluno, que passa a achar que história é uma matéria chata. E ainda temos um problema grave que é o descaso das autoridades com os arquivos, sobretudo os arquivos municipais. Há um descaso nas pequenas cidades que é revelador do desmando e da corrupção. Os documentos são sistematicamente eliminados quando se tornam papel velho. E nós temos um problema também com esses decoradores de Feng Shui que acham que coisa velha tem que ser tirada de casa (risos). Seria necessário um despertar da sociedade brasileira para a sua memória, para ela poder construir um amanhã mais organizado, mais bem pensado.
Mesmo a memória mais recente, como a da ditadura, ainda é uma questão mal resolvida.
Sim, sobretudo porque eu diria que 90% da população brasileira apoiou a ditadura. Ela é lembrada diferentemente pelos diferentes segmentos. Aqueles que apoiaram a ditadura obviamente estão aí para falar do seu apoio, da sua simpatia, mas eles também não são interpelados. Então a história fica nessa saia justa de contar o lado dos perseguidos, dos vencidos, daquelas pessoas que foram horrivelmente maltratadas. Mas ainda não se ouviu o outro lado. Porque se apoiou a ditadura? O que se temia na época? O que significou a Guerra Fria num país onde a insegurança era muito grande? Mas ainda acho que o maior problema que nós temos é a escravidão. Nós tivemos nos últimos anos e a partir do centenário da abolição, que foi em 1988, uma produção vastíssima.
Aliás, a universidade brasileira tem feito isso de forma sistemática, abundante e com qualidade, mas tem pouco impacto na sociedade. Não é à toa que a Taís Araújo foi agredida recentemente da forma mais violenta e insuportável. Digo sempre que o capital simbólico do Brasil, muito mais importante do que qualquer outro capital, é a miscigenação. É o fato de todos nós termos sangue variadíssimo, avós africanos na família, inevitavelmente – e agora há trabalhos publicados mostrando que nós temos também avós judeus. Gilberto Freyre, em Sobrados e Mucambos, já tem um capítulo inteiro sobre a ascensão do mulato médico, mulato jornalista, mulato advogado, não só Machado e Lopes Trovão, mas milhares de figuras importantes, como os famosos barões do chocolate que são mulatos enriquecidos. Nós sabemos, a partir de estudos históricos, que na transição do século 18 para o século 19 no Rio de Janeiro, por exemplo, quem era pobre tinha dois escravos, quem era remediado tinha cinco e quem era rico tinha mais de dez. Todo mundo tinha escravo, inclusive os afro-descendentes.
Quando você falou das dificuldades dos historiadores no Brasil, me ocorreu que do ponto de vista editorial a gente tem exemplos de grande sucesso, o Eduardo Bueno, o Laurentino Gomes, você, o Lira Neto…
…O autor de Mauá que eu adoro, jornalista maravilhoso, o Cafú (Jorge Caldeira), que é para mim o grande jornalista, ao lado do Lira Neto, daquele tipo que faz pesquisa, vai às fontes. Tenho uma admiração profunda por ele.
Como você vê essa dicotomia entre a dificuldade do ensino da história e da própria sobrevivência do historiador no Brasil e esses exemplos de sucesso editorial?
São jornalistas, né? Aprendi muito fazendo jornalismo, escrevendo para o Estadão, e antes, a partir dos 13 anos, para o Correio da Manhã. O jornalista sabe escrever para o grande público. É preciso atravessar essa ponte, se despir dessa camisa de força que é o linguajar acadêmico para chegar nas pessoas, senão a gente fica na torre de marfim da universidade. Acho que fazer história com mais modéstia significa também fazê-la com mais honestidade, fazê-la a partir das pequenas coisas. Essa é a maneira de você chegar ao leitor que os jornalistas vêm mostrando. É preciso deixar essa coisa pomposa, esse nós majestático, essa coisa de conjugar sempre na primeira pessoa do plural e não falar do Eu, eu fui ao arquivo, eu descobri tal documento, eu conversei com tal morto (risos), essa coisa gostosa que pode ser desafiadora e apaixonante, pode nos levar para longe e sem conclusões definitivas. A história é uma disciplina em construção. Quero ser como o mestre chinês que desenhava um leão todo dia até no final da vida conseguir desenhar um leão perfeito.
Você se notabilizou também por avançar nos temas, escrever, por exemplo, sobre a história íntima dos personagens brasileiros. Isso abriu um outro olhar sobre a nossa história.
Acho que trouxe problemáticas da contemporaneidade, quais sejam, felicidade, amor, sexualidade para dentro da história. Eu tinha uma produção bastante vasta sobre a história da família, das mulheres, das crianças, que me ajudou muito a conduzir esses livros com bastante seriedade. Porque os documentos estavam lá. As cartas, os comentários de Dom Pedro II no diário da Condessa de Barral quando ela diz “fui assistir tal peça de teatro” e ele romanticamente diz “ai, como eu gostaria de estar lá de mãos dadas com você”; ou quando ele escreve para ela dizendo que queria estar num “balão entrando pelo apartamento dela em Roma”. É difícil imaginar o imperador D. Pedro II, sisudo, com aquela barba, a dizer essas bobagens amorosas, que são aquelas que a gente diz quando está enamorado. Como a gente não consegue imaginar também a Condessa de Barral dizer para ele: “Pare de espetar a carne com a faca. Vá lavar suas unhas que estão sempre sujas! Troque de roupa, você está sempre com esse casacão. Pare de encostar nas pessoas. Na Europa ninguém suporta essa coisa de brasileiro de ficar pegando pelo braço”. Ao contrário de empobrecer os personagens, acho que isso os humaniza tremendamente. Ou quando o Conde D’Eu dizia para nossa Princesa Isabel: “Não coma batatas porque você está ficando gorda. Sente-se sempre com as pernas fechadas”. Me lembro de umas cartinhas dela durante a Guerra do Paraguai dizendo o quanto sentia falta de dormir ao lado dele. A Princesa Isabel, que não era nenhum padrão de beleza, tão católica, sempre com o terço na mão, indo à missa, varrendo a igreja e dizendo ao marido que sentia falta dele na cama! Quer dizer, é lindo, estava lá no arquivo, ninguém viu porque ninguém está sensível para essas questões.
O que você está fazendo agora?
Ah, é fantástico! São quatro volumes sobre a história do Brasil: colônia, império, república velha e república nova, sobre o pequeno, como os brasileiros viviam o seu cotidiano, na sua relação com o trabalho manual, a higiene, o consumo, a comida, a água, a iluminação, outrora vela, e o impacto do consumo. Uma história do Brasil que não tem heróis, revoluções, batalhas, nada disso, mas que conta, a partir do dia a dia, o que se comia, o que se vestia, o que havia nos baús, no mobiliário, na casa.
Você participou do História da Vida Privada. O que esses livros trazem de novo?
Muito, aquilo foi um ponto de partida. Há muito o que explorar: quem acordava as pessoas? O galo? O que comiam no café da manhã? Que tipo de alimentos chegava? Qual o impacto da imigração na alimentação brasileira? Qual foi o impacto da chegada da água no cotidiano das pessoas? O impacto do modismo, da comunicação, da leitura, da imprensa, do trem, da chegada dos esportes, milhares de pequenas coisas. Como as pessoas se distraiam sem luz, por exemplo: era catar piolho e contar história de assombração.