“Como pode alguém ser homem de manhã e mulher à noite?”
Foi assim que alguns vereadores de Campinas, ao lançarem uma moção de repúdio a Simone de Beauvoir, interpretaram a frase objeto de questão do #Enem2015 de autoria da filósofa: “ninguém nasce mulher, torna-se mulher”.
Diante do momento de obscurantismo que vivemos no Brasil, tanto no que diz respeito a impedir pautas progressistas, quanto a retroagir direitos garantidos, acho que cabe lançar luzes para que outros não repitam a mesma ignorância desse tipo de servidor público, que mais envergonha do que defende a população.
As duas grandes guerras mundiais (1914-1918 e 1939-1945) impactaram profundamente no modo com o qual as questões sexuais e familiares viriam a ser tratadas no século XX.
A introdução da mão-de-obra feminina no mercado de trabalho consolidou-se quando os homens foram chamados para os campos de batalha relegando a elas tudo que envolvia os negócios da família.
Com a independência da mulher e todo seu engajamento por melhores condições trabalhistas, ocorreram inúmeras mudanças no ambiente produtivo e no modo de organização do trabalho feminino. Pode-se dizer que, ao final da Segunda Guerra Mundial, as mulheres haviam alcançado formalmente suas reivindicações. Elas poderiam votar e serem votadas, ingressar no sistema educacional e participar do mercado de trabalho, implicando no reconhecimento da cidadania da mulher.
No entanto, o retorno da força de trabalho masculina, vinda das frentes de batalha, impõe um refluxo nas conquistas femininas ao pretender realocar a mulher no ambiente doméstico retirando-a do mercado de trabalho e de outros espaços públicos. Em resposta a essa tentativa de retrocesso nas relações entre homem e mulher, no final da década de 40, Simone de Beauvoir escreve o livro O Segundo Sexo e se torna uma voz isolada nesse momento de transição.
A filósofa e feminista francesa denuncia as raízes culturais da desigualdade sexual, visando contribuir com uma análise mais acurada das questões relacionadas à biologia, à psicanálise, ao materialismo histórico, aos mitos, à história e à educação para desvendar o universo feminino.
A autora estuda profundamente os condicionamentos psicológicos que desintegram a mulher de seu próprio sexo, processo pelo qual a alienação torna a figura feminina mero objeto do sujeito, o homem, este altamente identificado com seu sexo através da contínua autoafirmação que ocorre enquanto se socializa.
Segundo Beauvoir, os gêneros “masculino” e “feminino” são construções culturais apreendidas através do processo de socialização, que condiciona o homem e a mulher a funções específicas e naturaliza as relações de poder entre os sexos.
Assim, para a filósofa, “ninguém nasce mulher, torna-se mulher”, ou seja, a mulher não nasce oprimida, torna-se oprimida devido ao condicionamento cultural. Este é o marco que delineia os fundamentos da reflexão feminista que surgirão a partir da década de 60. Portanto nada tem a ver com as interpretações escabrosas derivadas da preguiça mental e da covardia moral de quem prefere se manter nas trevas da ignorância.