Associado à Escola de Frankfurt, o alemão Walter Benjamin é considerado por alguns estudiosos como o filósofo da melancolia. Filho de pais judeus, nascido em 1892, Benjamin teve uma curta carreira. Alinhou-se ao pensamento marxista anos antes do partido nazista assumir o poder na Alemanha, em 1933, quando decidiu exilar-se em Paris. O filósofo via na cidade luz uma grande fonte de inspiração para escrever seus ensaios e artigos para revistas literárias. Com a ocupação da França pelas tropas de Hitler, Benjamin empreendeu fuga sem sucesso, acabando por cometer suicídio, no ano de 1940, para não se entregar aos nazistas. Morreu aos 48 anos, mas viveu sonhando com a volta da paisagem de uma Europa que, então, encontrava-se em ruínas. Nesse sentido, o caráter melancólico do filósofo revela o anseio nostálgico representado pela relevância concedida ao ato de recordar.
No ensaio, publicado em 1936, O Narrador – Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov, Benjamin analisa o desaparecimento da figura do narrador; em suas palavras desoladoras: “…algo distante, e que se distancia ainda mais”. Para explicar a natureza da arte narrativa e o porquê de sua extinção, o filósofo se vale do escritor russo Nikolai Leskov, que apresenta os “traços grandes e simples que caracterizam o narrador”. O autor ressalta, no entanto, que o fato de conhecer Leskov não nos aproxima dele, mas nos distancia ainda mais. A existência de algo raro, no caso, a faculdade de intercambiar experiências dada pela narrativa, aumenta o peso de sua importância e de sua ausência entre nós.
A vivência em um tempo de devastação e desesperança permitiu a Benjamin entender que a morte da narrativa estava intimamente ligada ao silêncio dos soldados que voltavam da guerra, assim, mais pobres em experiência comunicável. O otimismo de uma geração havia se dissipado nas trincheiras. A aceleração desenfreada do homem para dominar a natureza o havia levado ao abismo em vez do progresso, o transformado em escravo de suas próprias invenções, submetido à técnica. As transformações ocorridas no século XIX e nos primeiros anos do século XX resultaram na disseminação de uma cultura voltada à efemeridade da informação impressa, em que os conceitos artificiais se sobrepõem às experiências naturais.
O desdém pelas tradições artesanais de comunicação oral traz consigo a perda de sensibilidade pelas experiências coletivas e pela dimensão utilitária que engendra a sabedoria em dar conselhos do narrador. Segundo Benjamin, o primeiro critério para contar histórias é justamente essa natureza oral, agora perdida. Aquele que mais se aproxima da simulação dessa fonte oral também é quem escreve as melhores narrativas. Para o filósofo, existem dois tipos básicos de narradores – aqueles que vêm de longe e contam suas aventuras (encarnados na figura do marinheiro comerciante) e aqueles que vivem em seu país e conhecem as histórias e tradições (representados pelo camponês sedentário). Os dois estilos produziram suas respectivas famílias na arte de narrar, sendo aperfeiçoadas pelos artificies que associaram o saber das terras distantes com o saber do passado.
Segundo Benjamin, Leskov encarnava as duas possibilidades de narração arcaica, tanto na distância espacial quanto na distância temporal. Religioso e membro da ortodoxia grega, o russo não tinha, contudo, boas relações com a burocracia eclesiástica ou o funcionalismo leigo, motivo pelo qual suas ocupações profissionais foram bastante breves. O emprego de agente russo exercido em uma firma inglesa foi, talvez, o mais útil para sua produção literária, pois havia possibilitado viajar por todo o Império Czarista durante o século XIX, o que teria enriquecido sua experiência de vida, os conhecimentos sobre o próprio país e, em especial, seus saberes acerca das tradições camponesas. Profundamente sábio, Leskov escrevera sobre os mais variados temas, tais como a classe operária, o alcoolismo, os médicos da polícia, os vendedores desempregados, enfim, principalmente aqueles dedicados ao cotidiano nos cenários russos. O escritor utilizava o ‘justo’ como a principal figura das suas narrativas, denotando o homem simples e laborioso que se torna santo. Benjamin considerava Leskov alguém que aceitava o mundo sem prender-se a ele e esta postura correspondia a um ideal de comportamento mundano.
A segunda característica do narrador é sua orientação para interesses práticos: todas as histórias abarcam algo de útil. Assim, as narrativas podem conter um ensinamento moral, uma sugestão prática, um provérbio ou uma norma de vida. De qualquer maneira, o narrador é um homem que sabe dar conselhos, estes que nascem de uma necessidade humana básica de contar exemplos da vida real e tentar lidar com o mistério da realidade humana. O autor oferece várias razões históricas e sociológicas para a morte da narrativa. A razão mais elementar é o fato de que a comunicabilidade da própria experiência está morrendo; assim, contar histórias que sempre oferecem um conselho, não tem mais lugar no mundo moderno. Na verdade, a própria sabedoria, o lado épico da verdade, que Benjamin define como “conselho tecido na substância viva da existência” e, portanto, que tem suas origens na narrativa, está morrendo. Este processo, no entanto, vem de longe, se desenvolvendo concomitantemente com toda a evolução secular das forças produtivas, que gradualmente removeram a narrativa do reino do discurso vivo.
A ascensão do romance é um dos principais sintomas do declínio da narrativa, sugere Benjamin. A vinculação do romance ao livro o separa da narrativa, pois não advém da tradição oral tampouco alimenta-se dela. Além disso, o filósofo afirma que, no romance, o indivíduo é marcado pelo isolamento, não pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupações mais importantes, não recebe conselhos e nem sabe dá-los, como, por exemplo, em Dom Quixote. Esta obra é considerada por Benjamin como o primeiro grande livro do gênero e mostra como os romances são totalmente refratários aos conselhos, não contendo a menor centelha de sabedoria, a grandeza da alma, a coragem e a generosidade de um dos mais nobres heróis da literatura. Segundo o filósofo, referindo-se, como melhor exemplo, à obra do escritor alemão, Johann Wolfgang von Goethe, “Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister”, quando se tentou ocasionalmente incluir no romance algum ensinamento, tais tentativas resultaram sempre na transformação da própria forma romanesca:
O romance de formação (Bindungsroman), por outro lado, não se afasta absolutamente da estrutura fundamental do romance. Ao integrar o processo da vida social na vida de uma pessoa, ele justifica de modo extremamente frágil as leis que determinam tal processo. A legitimação dessas leis nada tem a ver com sua realidade. No romance de formação, é essa insuficiência que está na base da ação.
Há, de acordo com Benjamin, outra forma de comunicação que ameaça as narrativas ainda mais seriamente que os romances. Ela ganhou predominância no mundo moderno devido ao destaque recebido pela imprensa após a ascensão da burguesia capitalista: a “informação”, disseminada principalmente pelos meios de comunicação. A diferença entre as formas de narrativas e as formas de informação, argumenta o autor, é que, enquanto contar histórias sempre teve uma validade que não requer verificação externa, a informação deve ser acessível à verificação imediata, ou seja, “antes de mais nada, ela precisa ser compreensível ‘em si e para si’”. A arte da narrativa é diferente da informação; contar histórias não pretende transmitir a essência pura da experiência de forma destilada, mas impregna a história com a vida do narrador. A narrativa, diferente da informação que só tem valor no momento em que é nova, não se entrega, conserva suas forças e depois de muito tempo ainda é capaz de se desenvolver.
O filósofo cita trecho das Histórias, de Heródoto, como exemplo de uma narrativa sem explicação interna disponível que, no entanto, ainda suscita espanto e reflexão. A razão pela qual a história ainda é alimento para o pensamento reside exatamente no fato de Heródoto não explicá-la.
Para Benjamin, “nada facilita mais a memorização das narrativas que aquela sóbria concisão que as salva da análise psicológica”. Segundo ele, quanto maior a naturalidade com que o narrador renuncia às sutilezas psicológicas, mais facilmente a história se gravará na memória do ouvinte. Tal processo de memorização de histórias, no entanto, está se tornando cada vez menos comum, porque a situação em que mais facilmente ocorre torna-se cada vez menos comum: o tédio. O ouvinte extasiado pelo ritmo de trabalho – como a tecelagem ou fiação – é o que mais naturalmente assimila a história. Se morre o artesanato, o mesmo ocorre com a narrativa.
Segundo o filósofo, a narrativa, que durante tanto tempo floresceu num meio de artesão, é, ela própria, uma forma artesanal de comunicação. E ela não está interessada em transmitir o “puro em si” da coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele, imprimindo-se na narrativa a marca do narrador. Aspectos do narrador se apegam à narrativa; esta é a razão pela qual muitos deles começam com as circunstâncias em que tenham tido acesso partindo para a história que estão prestes a contar. O próprio Leskov considerava essa arte artesanal – a narrativa – como um ofício manual: “a literatura não é para mim uma arte, mas um trabalho manual”, afirmou ele.
Para Benjamin, a short-story aparece como comprovação da sua denúncia em relação à efemeridade do mundo atual. Ela pode ser definida como uma abreviatura da narrativa, um encurtamento necessário mediante a dinâmica do mundo moderno. Ele cita Paul Valéry: “(…) já passou o tempo em que o tempo não contava. O homem de hoje não cultiva o que não pode ser abreviado”.
Benjamin acredita que a narrativa encontra sua validade na consciência da eternidade. A sabedoria da vida real torna-se transmissível no momento da morte e, assim, a morte torna-se marcante para a narrativa. No entanto, o homem moderno adotou um distanciamento do espetáculo da morte. Considerando que morrer, outrora foi um evento público para o indivíduo, nos tempos modernos, a morte foi empurrada para fora da percepção da vida. Nesse aspecto, Benjamin encontra outra razão para a arte da narrativa estar chegando ao fim.
O autor afirma que “cada vez que se pretende estudar uma certa forma épica é necessário investigar a relação entre essa forma e a historiografia”. Por isso, comenta sobre a ideia da historiografia como zona de indiferenciação criadora, com relação às formas épicas. Benjamin faz, também, uma distinção entre o historiador que ‘escreve histórias’ e o cronista, que ‘narra histórias’. O historiador explica a história; na crônica, o lugar da explicação é tomado pela interpretação, que não está na preocupação em concatenar precisamente os eventos, mas com a forma como eles são incorporados no grande curso inescrutável do mundo. Considerando que o cronista baseia seus contos em um plano divino da salvação e, portanto, é aliviado da carga da explicação, o historiador está vinculado ao processo de abstração que exige explicação. O narrador preserva a natureza da crônica, Benjamin diz, ainda, de uma forma secularizada.
O filósofo alemão lembra a definição de memória como uma capacidade épica. A Mnemosyne, deusa da reminiscência, era a musa do gênero épico entre os gregos. Segundo o autor, existe uma diferença de atuação da lembrança na narrativa e no romance, sendo ambos advindos da epopeia. Para Benjamin, o romance emancipou-se da epopeia. As epopeias homéricas dividem-se em dois momentos: o da memória perene do romancista em oposição à memória de entretenimento do narrador. Quanto à relação entre o narrador e o ouvinte, Benjamin argumenta sobre a necessidade do ouvinte em apoderar-se da narrativa para que possa reproduzí-la. Há uma diferença fundamental entre a forma como a memória se manifesta no romance e a forma como ele se manifesta na narrativa, diz Benjamin. A memória é o que cria a corrente que passa a narrativa de uma geração para outra.
Como resultado, a narrativa centra-se na relativamente concreta “moral da história”, enquanto o romance centra-se no “sentido da vida”. O primeiro narrador, diz Benjamin, é o de contos de fadas, pois eles fornecem bons conselhos. De acordo com Benjamin, enquanto formas de narrativas realistas, os personagens de contos de fadas deparam-se com os mistérios mais básicos da experiência humana que não podem ser explicados por meios racionais, mas que só podem ser incorporados em mitos. O ensinamento mais sábio do conto de fadas é ajudar as crianças a enfrentarem as forças do mundo místico com astúcia e arrogância.
O grande narrador tem suas raízes no povo, principalmente nas camadas artesanais, descreve uma outra característica apontada pelo autor, que cita Gorki para exemplificá-la: “Leskov é o escritor…mais profundamente enraizado no povo e o mais inteiramente livre de influências estrangeiras”. Benjamin comenta que, para Leskov, o mundo das criaturas se exprime menos através da voz humana que por meio do que ele chama de “a voz da natureza”. Assim, alerta através do seu personagem central, Filip Filipovich, um pequeno funcionário que, para hospedar em sua casa um marechal de campo que passa pela cidade, se vale de todos os meios. Em tal narrativa, “a voz da natureza” é a voz experiencial da narração, onde o fato acontecido no passado é lembrado de forma natural.
Para Benjamin, à medida que Leskov desce na hierarquia das criaturas, mais “a voz da natureza” adquire o aspecto próprio do narrador, isto é, sua noção das coisas se associa ao misticismo. O filósofo lamenta o fato de não haver muitas obras na narrativa recente, nas quais a voz do narrador anônimo, anterior a qualquer escrita, reflita de forma tão audível como na história de Leskov, A Alexandrita.
O dom do narrador é o dom de se relacionar com a vida, pois ele é capaz de moldar a matéria-prima da experiência, tanto a sua própria quanto a experiência dos outros, de uma forma sólida e útil. Por isso, é lamentável, para Benjamin, que a arte da narrativa, ou seja, a capacidade de trocar experiências tenha sido lentamente tirada de nós.
Finalmente, o autor conclui o ensaio apresentando a atmosfera que circunda o narrador em Leskov. Benjamin afirma que o narrador figura entre os mestres e sábios, é o homem que poderia deixar a luz tênue de sua narração consumir completamente a mecha de sua vida e, além disso, é a figura na qual o justo se encontra consigo mesmo.
O valor real do ensaio de Benjamin não reside na sua afirmação de valores marxistas, seja social ou esteticamente, nem sua análise de Leskov, porque é apenas uma pequena parte da peça, mas sim nas sugestões que oferece sobre a natureza básica da narrativa, particularmente a natureza primária da história, em oposição à mais recente característica narrativa realista do romance. Ninguém que deseja compreender a natureza básica da História pode realmente se dar ao luxo de ignorar esse profundo estudo de Walter Benjamin sobre o narrador.
Referência bibliográfica
BENJAMIN, W. O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. Obras escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 1987.