Proporcionar aos nossos jovens um ensino de qualidade parece ser um grande desafio para os governantes. Quando falamos de estudantes de baixa renda, os problemas tornam-se ainda maiores. Devido às dificuldades com que a maioria deles convive no cotidiano, muitas vezes, o desestímulo acaba prevalecendo quando o assunto é frequência escolar. Muitos têm de abandonar os estudos para ajudar os pais, seja trabalhando para complementar a renda familiar ou cuidando dos irmãos enquanto os pais trabalham. Outros acabam se “atrasando”, sentindo-se deslocados em turmas de menor idade. Há ainda aqueles que preferem viver entre seus pares, brincando, jogando videogame, ou, quando pior, envolvendo-se em atividades consideradas ilícitas.
Dadas essas perspectivas, a evasão escolar nos é apresentada como um dos fatores mais preocupantes do sistema educacional brasileiro. Tanto que, na última década, o governo implementou um sistema de remuneração para as famílias de baixa renda que mantiverem seus filhos na escola. Ao mesmo tempo em que tenta sanar o problema da fome no país, resolve o problema da evasão. Os frutos geracionais que espera colher por meio da iniciativa certamente serão melhores do que se nenhuma medida fosse tomada, mas a pergunta que fica é: basta colocar os estudantes na sala de aula sem melhorar substancialmente a qualidade da educação?
O sistema educacional brasileiro é marcado pelo modelo tradicional, com salas de aulas clássicas separadas por paredes, aulas expositivas em que o professor é o único transmissor do saber, muros separando a escola da comunidade, o que, segundo o filósofo Michel Foucault, em Vigiar e Punir, representa o modelo de dominação corporal sendo exercido sobre os alunos. Para ele, o corpo dócil é manipulável, modelável, passível de ser treinado, obediente, capaz de responder, tornar-se hábil e multiplicar suas forças. O ambiente escolar no qual esse corpo é disciplinado é condizente ao de uma prisão.
Essa relação disciplinar imposta sobre a docilidade e a utilidade dos corpos se dá através dos detalhes, de técnicas minuciosas e relevantes, “porque definem um certo modo de investimento político e detalhado do corpo”, tendendo ao alcance de todo o corpo social. A isso Foucault denomina a microfísica do poder, que vê a disciplina como a anatomia política do detalhe.
Segundo o autor, no contexto educacional, a disciplina exige um espaço heterogêneo, porém fechado, idealizado pelo modelo de convento. Neste local útil para disseminar a submissão, cada indivíduo deve permanecer em seu lugar para que seu comportamento possa ser vigiado e, para fins de classificação, colocar-se em filas que demarquem sua posição.
A escola tradicional é marcada pelo sofrimento do aluno, pela sua dominação sutil, realizada nos detalhes, consequentemente pelo desprezo à sua integralidade como sujeito. Trata-se de uma máquina de pensar, vigiar, hierarquizar e compensar, transformando multidões confusas, inúteis ou perigosas em “quadros vivos”, ou seja, em multiplicidades organizadas, afim de manter a “ordem”.
Fugindo desse modelo disciplinador de “educação bancária”, expressão cunhada pelo educador Paulo Freire para designar o processo de disseminação de informações, em que o professor as deposita na cabeça ‘vazia’ dos alunos, estes apenas tratados como receptores do acervo cultural alheio, normalmente de seu dominador, podemos falar em outras tendências pedagógicas, de uma nova escola em que só se aprende a fazer ciência/conhecimento fazendo, ou seja, o ato de aprender é associado à capacidade de descobrir e construir respostas para a vida cotidiana, situando o aluno no centro do processo de ensino e aprendizagem, mudando sua relação com o docente.
Tais tendências transformadoras se apoiam na crença da possibilidade de reverter a dominação ideológica e a opressão política, protagonizadas pela ditadura do capital, assim como, na tese de que a escola não pode tudo, mas pode muito, atribuindo a ela o papel de contribuir com o processo de transformação social. O principal expoente dessa ideia foi Paulo Freire, que entedia a aprendizagem como um ato de “desvendamento da realidade” e de superação gradual da “consciência ingênua” e defendia como procedimento metodológico básico a “problematização da prática social” nos “círculos de cultura”, ou seja, ele propõe a superação das desigualdades sociais e a concretização do projeto de emancipação humana através da Escola Libertadora.
A Escola Municipal Campos Salles, na comunidade de Heliópolis, possui uma fórmula que tem dado certo. A instituição tornou-se referência em educação com a participação de todos os estudantes, professores e moradores da região. A proposta da escola é que a comunidade se organize pensando alternativas que melhorem sua própria realidade, de hoje e do futuro, enquanto o projeto escolar trabalha verdadeiramente na construção do conhecimento.
A escola implementou uma forma de trabalhar que vê o aluno como o sujeito da aprendizagem, o que possibilita com que exerça desde já a sua cidadania. É a passagem da concepção da criança como ser menor e incompleto, para aquela que vê a criança como ser integral, plenamente capaz de se organizar e interagir em seu próprio meio.
Visando a autonomia do aluno na construção de seu aprendizado, as aulas acontecem em grandes salões com média de 100 deles da mesma série, divididos em grupos. Vale lembrar que, no modelo tradicional, as classes eram separadas por paredes, estas que foram derrubadas para oferecer uma área maior à integração. Nesse espaço, os alunos estudam em grupos de no máximo 4 pessoas, cada qual exercendo, na ordem que desejarem, seu roteiro de estudos entregue, em média, a cada mês pelo professor da disciplina, após uma orientação específica. Caso tenham alguma dúvida que não foi sanada com o material disponível (livro ou internet), conversam sobre ela primeiramente no próprio grupo. Se ainda continuarem sem resposta, levantam a mão e um dos professores presentes – normalmente 3 por salão – aproxima-se para ajudá-los. Com isso, os professores também aprendem a trabalhar em equipe, quebrando seu isolamento, pois precisam saber o que os colegas estão trabalhando em seus roteiros, já que o professor daquela matéria que o aluno decide estudar poderá estar em outra aula.
Segundo Foucault, contrariando o modelo citado acima, os corpos dóceis são controlados por uma tática em ritmo coletivo e obrigatório, em que a disciplina impõe uma melhor relação entre corpo e gesto, para maior eficácia e rapidez. Neste caso, o tempo de uns deve ajustar-se ao tempo de outros, excluindo o caráter único de cada ser.
A Campos Salles busca tratar o aluno como um indivíduo que porta saber, por isso incentiva ações também fora da sala de aula que os preparem de fato para o mundo. É o caso da República dos Alunos, em que eles discutem os pormenores de como tudo funciona, resolvem conflitos, debatem assuntos de interesse de seus pares, escutam suas reivindicações e discutem como encaminhá-las. É uma educação democrática, na qual os estudantes participam e decidem sobre assuntos administrativos e regras gerais de funcionamento da escola, que compartilha com os alunos a responsabilidade de geri-la, empoderando-os.
Mas nem sempre foram flores. A comunidade de Heliópolis convivia com a violência bem de perto, chacinas, tráfico de drogas. O assassinato de uma aluna nas imediações da escola na saída da aula fez com que tudo começasse a mudar. O engajamento de todos (direção da escola, pais, professores, estudantes, associações, empresas e moradores) trouxe ao bairro a corresponsabilidade pela educação de suas crianças, fazendo nascer o projeto Bairro Educador.
O ambicioso projeto educacional da escola Campos Salles surge em um contexto de cinzas, para fazer renascer no pensamento de cada indivíduo a possibilidade de construção de seu próprio futuro, sua verdadeira descoberta.
Referências bibliográficas
FOUCAULT, M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolos: Editora Vozes, 1987.
FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005.