Caminhante, um dos poemas mais divulgados de Antônio Machado, concentra interessante conteúdo filosófico referente à questão da prioridade essência e existência. Aliás, característica presente em outras criações do poeta existencialista que fez parte da “Geração de 98”, como era denominado o grupo de escritores espanhóis (Jose Ortega Y Gasset, Miguel de Unamuno, entre outros) cujas críticas literárias giravam em torno de uma época marcada por grande atraso social e econômico ulterior à derrota militar na Guerra Hispano-Americana e a decorrente perda de Porto Rico, Cuba e Filipinas, em 1898, para os EUA.
A filosofia do holandês Baruch Spinoza é, por excelência, uma filosofia da essência. A essência de uma coisa é o seu ser verdadeiro e profundo (por oposição às aparências). A essência é substância, “necessariamente existente”, Deus (natura naturans). A propriedade de um objeto é essencial quando sem ela esse objeto não poderia existir. Os fenômenos são os infinitos modos da natureza divina se manifestar no mundo (natura naturata).
O existencialismo contesta a prioridade da essência em relação à existência: “a existência precede a essência”, pois, segundo o filósofo francês Jean-Paul Sartre, o homem cria-se a si próprio, é responsável pelos seus atos e escolhas. Assim, o homem está condenado a ser livre: “condenado porque não se criou a si próprio; e, no entanto, livre, porque uma vez lançado ao mundo, é responsável por tudo quanto fizer”.
Nesse sentido, Antonio Machado retrata o desvelamento das ações e emoções concernentes à existência humana com primor e simplicidade. Enquanto para os essencialistas, a natureza humana é a explicação da vida do homem, dotado de uma natureza eterna e invariável no decorrer do tempo, para o poeta existencialista, a vida humana é o fundamento de toda a realidade e valor, ou seja, o processo da vida humana é o definidor do que conhecemos como natureza humana a qual está em constante transformação, por óbvio não é imutável devido a uma suposta essência. Em suas poesias, há referências à historia, às angústias e às características da vida humana na contemporaneidade; há alusões ao passado, ao presente e ao futuro do homem em sua relação com a pátria e, finalmente, como veremos no poema a seguir, reflexões sobre o destino humano individual.
Caminhante, não há caminho
Tudo passa e tudo fica
porém o nosso é passar,
passar fazendo caminhos
caminhos sobre o mar
Nunca persegui a glória
nem deixei na memória
dos homens minha canção
eu amo os mundos sutis
leves e gentis,
como bolhas de sabão
Gosto de vê-las pintar-se
de sol e graná, voar
abaixo o céu azul, tremer
subitamente e quebrar-se…
Nunca persegui a glória
Caminhante, são tuas pegadas
o caminho e nada mais;
“Caminhante, não há caminho,
faz-se caminho ao andar…”
Ao andar faz-se caminho
e ao voltar a vista atrás
se vê a estrada que nunca
se há de voltar a pisar
Caminhante não há caminho,
senão rastros no mar…
Há algum tempo neste lugar
onde hoje os bosques se vestem de espinhos
ouviu-se a voz de um poeta gritar
“Caminhante não há caminho,
faz-se caminho ao andar…”
Golpe a golpe, verso a verso…
Morreu o poeta longe do lar
cobre-lhe o pó de um país vizinho.
Ao afastar-se viram-no chorar
“Caminhante não há caminho,
faz-se caminho ao andar…”
Golpe a golpe, verso a verso…
Quando o pintassilgo não pode cantar.
Quando o poeta é um estranho.
Quando de nada nos serve rezar.
“Caminhante não há caminho,
faz-se caminho ao andar…”
Golpe a golpe, verso a verso.
Antonio Machado – [Sevilha, 26/7/1875 – Collioure, 22/2/1939]
Referências bibliográficas
MACHADO, A. Antologia Poética. (Seleção, tradução, prólogo e notas de José Bento). Lisboa: Editorial Cotovia, 1999.
SARTRE, J.P. O existencialismo é um humanismo. São Paulo: Nova Cultural, 1973. (Col. Os Pensadores)
SPINOZA, B. Tratado Político. São Paulo: Abril Cultural, 1978. (Col. Os Pensadores)
Imagem: Quadro de Leonid Afremov, “Alone in the fog” (2014).