Os filósofos frankfurtianos Theodor Adorno e Max Horkheimer propuseram-se a árdua tarefa, na obra de 1947, Dialética do Esclarecimento (DE), de descobrir por que a humanidade, ao invés de entrar em um estado verdadeiramente humano, de civilidade, estaria se afundando em uma espécie de barbárie.
De início, os autores subestimaram a dificuldade de tal exposição, pois ainda depositavam excessiva confiança no potencial crítico da consciência em voga, imaginando poder encontrar a solução dentro da realidade existente através do recurso crítico à teoria das disciplinas tradicionais, como a sociologia, a psicologia e a teoria do conhecimento (epistemologia).
Para o entendimento que Adorno e Horkheimer apresentam em relação ao termo Aufklärung é adequado que ele seja tomado como esclarecimento, por um lado, devido à sua significação histórico-filosófica e, por outro, pelo sentido amplo que tomará na crítica da DE, bem como por ser essa a designação usual.
Na ideia conferida por Immanuel Kant, em seu texto Resposta à pergunta: Que é esclarecimento? (em alemão: “Beantwortung der Frage: Was ist Aufklärung?”), a expressão Aufklärung é o processo de emancipação intelectual resultante tanto da superação da ignorância e da preguiça de pensar por conta própria como da crítica das prevenções inculcadas nos intelectualmente menores por seus maiores (superiores hierárquicos, padres, governantes etc.).
O processo kantiano de esclarecimento, realizado por meio do uso da razão, visa a tomada de poder pelo indivíduo das rédeas de sua vida ao engendrar atos e escolhas a partir de sua própria deliberação racional.
Na visão frankfurtiana, expressa na obra em questão, o termo Aufklärung está intimamente ligado ao processo pelo qual as pessoas se libertam do medo de uma natureza desconhecida, à qual atribuem poderes ocultos para explicar seu desamparo em face dela.
Adorno e Horkheimer não veem o esclarecimento como um acontecimento filosófico ou uma época histórica determinados, mas como o processo em que os homens libertam-se das potências míticas da natureza, ao longo da história, passando a viver sob o predomínio de um conhecimento técnico-instrumental. Assim, trata-se de um processo de racionalização que prossegue na filosofia e na ciência, no qual, paulatinamente, a natureza perde sua qualidade transformando o ser em mero objeto. Nesse aspecto, segundo os autores, o conceito de esclarecimento proposto pelo projeto iluminista provocou o que chamam de processo de “desencantamento com o mundo”.
Adorno e Horkheimer buscam explicar que o vínculo entre mito e esclarecimento forma uma relação dialética muito próxima, em que o próprio mito é tido como a origem do processo de desmitologização, encontrando seu termo atual na mitologização do esclarecimento sob a forma de ciência positiva. Ou seja, o mito constitui o primeiro momento no qual se dá o esclarecimento, já visando conhecer a natureza e dominá-la. Ao superar o mito, o esclarecimento transforma-se em uma nova mitologia.
Os frankfurtianos alegam que vivemos sob a égide da mitologização da ciência, que se tornou uma espécie de “deus”. Eles criticam o fato de, na modernidade, o esclarecimento ser produzido somente através dela, pois enxergam o preço pago pelas grandes invenções da atividade científica moderna como a ruína progressiva da cultura teórica. Contudo, sabendo que uma parte do conhecimento é composta pelo cultivo e pelo exame atentos da tradição científica, não obstante, o que se torna problemático não é a atividade científica em si, mas o sentido tomado por ela no colapso da civilização burguesa vigente.
Assim, para os autores, o conceito de esclarecimento não pode ser reduzido às Luzes do século XVIII, pois, embora não perca o vínculo que o liga ao conceito crítico e emancipador expresso pelo termo na linguagem ordinária e filosófica, não designa um movimento filosófico, mas resulta de um aprofundamento crítico que leva à desilusão de seu otimismo por ter se transformado em um processo de dominação da natureza resultando paradoxalmente numa mais completa naturalização do homem totalmente civilizado.
A DE foi escrita sob a influência do terror nacional-socialista, o nazi-fascismo, em que foi possível notar a dinâmica tomada pelo processo de esclarecimento. Ao mesmo tempo em que o conceito apontava os caminhos para a racionalização da civilização, que a levaria a um processo emancipatório, também trazia intrínseco o processo de dominação. Desta forma, os frankfurtianos não viam como meros acontecimentos históricos os conflitos existentes no Terceiro Mundo, a divisão do mundo em dois blocos colossais, o crescimento possante do totalitarismo ao redor do globo, tampouco o fascismo de sua época.
Se Kant entendia o esclarecimento como o processo pelo qual ocorre a emancipação dos indivíduos, Adorno e Horkheimer entendiam esse mesmo processo como um meio de dominação do homem e como colaborador direto para a criação de sociedades repressoras e totalitárias.
Por conseguinte, atentam para a infatigável autodestruição do esclarecimento, sem a necessidade de haver algo destruidor externo a ele, elaborando uma crítica ao conceito da modernidade resultante da instrumentalização do conhecimento.
Ao constatarem que o pensamento da opinião pública inevitavelmente se convertera em mercadoria e sua linguagem, consequentemente, em seu encarecimento, denotando que o controle do mundo pela técnica fazia com que, cada vez mais, poder e conhecimento tornassem-se sinônimos, os filósofos alicerçarão sua crítica recusando lealdade às convenções linguísticas e conceituais em vigor, “antes que suas consequências para a história universal frustrem completamente essa tentativa”.
Os autores alegam que o pensamento sociológico poderia tomar como ponto de partida aquelas tendências opostas ao positivismo, caso se tratasse apenas dos obstáculos resultantes da instrumentalização desmemoriada da ciência. No entanto, tais tendências também são presas do processo global de produção, não tendo se modificado menos que a ideologia à qual se referiam.
Acontece com elas algo similar ao pensamento triunfante, pois se ele se abstém da crítica a serviço da ordem existente, tende, contra sua própria vontade, a transformar aquilo que escolheu como positivo em algo negativo, destruidor.
Para eles, tomando como exemplo o tratamento dado à Filosofia em diferentes contextos históricos, as metamorfoses da crítica na afirmação não deixam incólume seu conteúdo teórico, mas volatilizam a verdade. No entanto, ao que chamam de história motorizada toma a dianteira desses desenvolvimentos intelectuais e os porta-vozes oficiais liquidam a teoria que os ajudou a encontrar um lugar ao sol, estando movidos por outros cuidados, antes mesmo que ela consiga se propagar plenamente.
Ao tomar consciência da própria culpa, o pensamento se vê privado não só do uso afirmativo da linguagem conceitual e cotidiana, mas também da linguagem crítica. Nesse sentido, todas as expressões tendem a concordar com as direções dominantes do pensamento e aquilo que não faz espontaneamente a linguagem desgastada é suprido com precisão pelos mecanismos sociais. Adorno e Horkheimer traçam um paralelo entre os censores mantidos voluntariamente pelas fábricas de filmes afim de evitarem custos futuros, e o processo tão minucioso quanto a censura a que se submete a criação de um texto literário, seja na produção ou pelos leitores, editores, redatores e ghost-writers.
Acreditando ficar suscetível à linguagem mítica, caso não se submetesse à linguagem positivista, o espírito da modernidade acaba preparando seu próprio terreno para a linguagem mítica. O cerceamento da imaginação teórica preparou, assim, o caminho para o desvario político. E, de acordo com os frankfurtianos, aqueles que ainda não sucumbiram ao sistema, acabam privados dos meios de resistência pela censura externa ou aquela que foi introjetada no indivíduo pelo sistema. O vazio do espírito acaba sendo preenchido pelos valores de mercado, propostos pela Indústria Cultural em que o sujeito só encontra seu lugar social quando converte-se ao consumismo, estando completamente anulado em face dos poderes econômicos.
O paradoxo com que se defrontam os autores, revela o primeiro objetivo a ser investigado: a autodestruição do esclarecimento, tendo sempre em vista que não separam a liberdade na sociedade do pensamento esclarecedor. No entanto, salientam que, em nome do esclarecimento, é necessário esclarecer o esclarecimento contra o esclarecimento, pois a fraqueza do poder de compreensão do pensamento teórico atual não acolhe em si a reflexão sobre seu elemento regressivo.
Ao usar uma linguagem desgastada para recomendar a inovação, adota-se também o aparelho categorial inculcado e a má filosofia que se esconde por trás dele reforçando o poder existente que ele gostaria de romper. Desta maneira, a falsa clareza é apenas outra expressão do mito, sendo creditada através da familiaridade e pelo fato de dispensar o trabalho do conceito.
A reformulação da linguagem deve produzir conceitos que sejam compreendidos não apenas como histórico-culturais, mas como reais, de modo a colocá-los em movimento. Se o progresso se converte em regressão, cabe o entrelaçamento, proposto pelos autores, da racionalidade e da realidade social, bem como, da natureza e da sua dominação.
A crítica feita ao esclarecimento, deve preparar um conceito positivo do esclarecimento, que o solte do emaranhado que o prende a uma dominação cega do homem pelo próprio homem e leva à perpetuação do status quo.
Para os autores, o verdadeiro pensamento crítico, aquele que não é freado nem mesmo diante do progresso, ainda que impotente diante da grande marcha da história, deve tomar partido pelos últimos resquícios de liberdade e pelas tendências ainda existentes a uma humanidade real.
No livro, Adorno e Horkheimer não medirão esforços para fazer uma crítica da Filosofia iluminista utilizando a própria Filosofia, furtando-se de angariar informações à maneira positivista. Deste modo, a ideia que importa é conservar a liberdade, ampliando-a e desdobrando-a, em vez de acelerar, ainda que indiretamente, a marcha em direção à tendência ao mundo administrado.
Referências bibliográficas
ADORNO, T.W., HORKHEIMER, M. Dialética do Esclarecimento: Fragmentos Filosóficos. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 1985.
KANT, I. Resposta à Pergunta: Que é Esclarecimento? In: Textos Seletos. Petrópolis: Vozes, 1974.